Como todo mundo que ouve além das vozes humanas nos documentários, sou fã do trabalho do duo mineiro O Grivo. Em filmes de Cao Guimarães, Marília Rocha, Helvécio Marins Jr., Clarissa Campolina, Marcos Pimentel e outros, O Grivo vem semeando um novo conceito na relação entre som e realidade. Música, falas, ruídos naturais e ruídos produzidos se confundem em paisagens sonoras que influenciaram decisivamente o desenho de som dos documentários. Estou desenvolvendo essas ideias para a próxima edição da revista Filme Cultura, que vai trazer um dossiê sobre o som no cinema brasileiro.

Sou fã dos caras, mas nunca os tinha visto ao vivo. E boa parte do trabalho deles se dá em performances de palco, instalações, exposições de “quadros sonoros” e apresentações multimídia. O Multiplicidade os trouxe ao Rio na semana passada com o concerto Máquina de Música.

Quando entramos na sala, somos impressionados antes de mais nada pelos olhos. O palco está coalhado de instrumentos, metrônomos, manivelas, pequenas e delicadas geringonças de madeira e metal, vitrola e gravador de rolo antigos, uma pianola, buretas pendendo do teto e apontando para bacias de metal, laptops. Acho que até o Hermeto Pascoal ficaria zonzo com tanta traquitana.

Mas Nelson Soares e Marcos Moreira se movem com a parcimônia de clérigos numa loja de lâmpadas. Quase não se olham enquanto se dividem entre os instrumentos. O som que tiram, em boa parte do tempo, é indiscernível entre o que seja acústico e eletrônico, tocado ao vivo e pré-gravado, o improvisado e o cuidadosamente planejado. Às vezes ouvimos algo mais próximo da música convencional, como quando atacam um blues com tempo marcado por uma vitrolinha sem disco que bate três vezes num filete de metal em cada giro. Outras vezes, somos brindados com belas cacofonias que subitamente se estabelecem como ritmo e sonoridade inesperados.

O princípio do metrônomo rege, se não todas, a maioria das composições apresentadas. A cadência é ditada por engrenagens diversas, potencializadas pela ligação com o computador. Até as gotas que caem das buretas servem de padrão para uma das peças.

Na tela, sucedem-se imagens de Cao Guimarães feitas especialmente para esse concerto. São big closes dos próprios instrumentos criados por eles, em ação simultânea ao que acontece ao vivo. Em cada número, portanto, o padrão rítmico é “sublinhado” visualmente por essas imagens.

Pelo que vi no Multiplicidade, os concertos de O Grivo são mais estudos de criação sonora do que espetáculos musicais propriamente ditos. Melhor dizendo, são propostas para uma sensibilidade musical mais afeita ao conceito de soundscapeque de melodias facilmente consumíveis. Apelam à nossa memória e imaginação para completar a música que eles, muitas vezes, apenas insinuam.